Baixada nunca se rende
- #ComCausa
- 23 de mai. de 2017
- 6 min de leitura

A Arte em sua história sempre foi uma demonstração do agir político e, nesse caso, não poderia ser diferente. Que o diga o coletivo de músicos que há 1 ano agrega talentos das mais variadas vertentes. Nascido em Belford Roxo, o “Baixada Nunca se Rende” converteu-se em uma das poucas alternativas para que artistas da Baixada Fluminense pudessem exercer seus ofícios através de uma rede de apoio. Essa união foi registrada e resultou no documentário homônimo lançado semana passada no Cine Odeon, Centro do Rio. Filmado pela dupla de cineastas Christian Tragni e Juliana Spínola, o filme é resultado de um projeto da Organização das Nações Unidas (ONU) para divulgar, através de canções, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS, leia mais sobre eles abaixo) a serem atingidas até 2030.
Formado em sua maioria por músicos, a organização do BXD, como é carinhosamente conhecido, foi basicamente espontânea, como explica Saulo Lira, tecladista e produtor musical do grupo. “Já agregamos entre 100 e 150 artistas. Há de tudo um pouco. Desde de folia de reis até rap, passando obviamente pela dança e pelo teatro”, explica o músico. Compartilhando da mesma necessidade de espaços para se apresentarem, os integrantes do Baixada Nunca se Rende foram compartilhando suas angústias nas redes sociais.
Da angústia partiu-se para a ação e hoje os resultados vão aparecendo paulatinamente. Dentro de possíveis encaixes, cada um pode ter o seu espaço para brilhar e conscientizar o seu público. Mas como se não bastassem os problemas, digamos, existenciais do grupo, contratempos artístico-profissionais ainda precisam ser sanados, como explica novamente Saulo. “Precisamos qualificar a gerência de nossas carreiras artísticas. Temos projetos que precisam de capacitação técnica para concorrer a editais, por exemplo. Antes de almejarmos o sucesso, embora não seja a nossa pretensão em primeiro lugar, temos que saber nos organizar”.
Mas será que sucesso combina com engajamento político, ainda mais em se tratando de um tema tão delicado quanto desenvolvimento sustentável? Quem responde é o roqueiro Renato Aranha, vocalista da banda Rota Espiral, de São João de Meriti. “Há alguns anos fizemos um show para o evento SOS Chuvas - Tribos Unidas para as vítimas de uma enchente que houve lá em Xerém. Enchemos a Arena Cultural Jovelina Pérola Negra, na Pavuna, de galões de água potável. Conseguimos juntar com a nossa música, uma corrente de união e ao mesmo tempo expor um problema (as mudanças climáticas) que pode afetar a todos nós.”, explica Aranha. Inspirado por bandas que se consagraram utilizando o discurso da inconformidade com os problemas mundiais, como Midnight Oil e Rage Against the Machine, o músico diz que o BXD tem em uma de suas razões de ser, a transformação pela arte.
Ras Bernardo soltando o vozeirão
Talvez um dos gêneros musicais que mais propague a premissa da transformação, quer seja por ações ou por transcendentalidade, seja o reggae. O ritmo jamaicano, imortalizado por Bob Marley, migrou-se para o mundo e também fez de Belford Roxo sua morada. A adaptação foi tão coesa que a cidade, em pouco tempo, tornou-se um celeiro de bandas, dentre as quais, uma que revolucionaria o reggae nacional, a Cidade Negra. Embora, na época de seu surgimento, a preocupação em denunciar assuntos espinhosos fosse mais latente, temas como violência policial e abuso de poder precisaram ser amaciadas para entrar em consenso com as pretensões de sucesso de seus músicos, o que desagradou em cheio o então vocalista Bernardo Rangel, depois repaginado como Ras Bernardo e também um dos integrantes do Baixada Nunca se Rende.
Neco Trindade
Tal transformação não era compatível com o que achava que deveria ser a mensagem expressa pela banda. “Eles resolveram seguir o esquema de venda das gravadoras, mas não guardo nenhum rancor. Segui o meu caminho e eles trilharam os seus”. Perguntando sobre o desafio em ser novamente um músico da periferia, Bernardo é filosófico. “Tem que haver muito amor pelo que faz, pra chegar onde chegamos. Tudo o que você faz precisa ter o sabor da primeira vez. Com isso, a gente escolhe como a nossa vida vai ser construída. Esse é meu lema”, diz Bernardo.
Iolly Amancio é vocalista da banda Gente, de Mesquita. Com a mesma docilidade que canta, é capaz de narrar violências de seu cotidiano que servem de inspiração para as canções do grupo, compostas ao lado do companheiro Wallace Cruz. Uma de suas músicas, a bela e triste “Rede”, (confira no vídeo abaixo) conta uma história que infelizmente se repete na BF. “Ela fala sobre a perda de uma mãe que tem o filho assassinado bem perto de onde eu morava. Nós presenciamos praticamente um velório a céu aberto, pois o corpo do menino ficou mais de 5 horas a espera de ser recolhido”, explica Iolly.
Iolly e Wallace da banda Gente, de Mesquita
A banda ficou encarregada de criar uma música com a tema da ODS 16 (construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis). “A cultura é uma instituição que precisa ser revitalizada com urgência. Sofremos um apagão cultural todos os dias e nossa única forma de reagir a tantas injustiças e abandonos do poder público é compor e cantar. Fizemos uma canção que retrata o desespero de uma mãe, mas também as frustrações de quem mora na Baixada e convive com tanta tragédia”, enfatiza Wallace.
De forma semelhante pensa o jornalista e rapper Roberto de Oliveira Silva, o Eddi MC, um dos fomentadores dessa família musical. Para ele, o grande trunfo o documentário é apresentar uma Baixada Fluminense um pouco menos conturbada para o grande público. “Ela não é apenas um lugar violento, mas uma usina de talentos que ainda precisa ser descoberta”, define Eddi.
Todas essas pequenas histórias de solidariedade em grupo foi o suficiente para despertar o interesse de Layla Saad, vice-diretora do Centro Mundial para o Desenvolvimento Sustentável do Pnud/ Centro RIO+ para que o projeto tomasse corpo. O objetivo era que os ODS´s se tornassem algo familiar para a sociedade civil. “Conseguimos juntar as duas maiores e mais poderosas formas de comunicação que é o cinema e a música para contar uma história de inspiração e superação ainda em desenvolvimento nesses territórios da Baixada. Quisemos enfatizar o engajamento do cidadão comum frente aos seus problemas. Todos esses artistas que participam do documentário demonstram profundo orgulho em pertencer a Baixada e queríamos que essa força criativa fizesse parte do filme”, conta Layla.
A parceria entre o Baixada Nunca Se Rende e o Centro RIO+ resultará em algo considerado ambicioso por Layla: a apresentação, pelo mundo, do modelo de difusão dos ODS para replicação nos escritórios do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) existentes em quase 170 países. O Centro RIO+ é um dos seis centros de políticas globais do PNUD e é fruto de uma parceria entre a agência da ONU e o governo brasileiro. Entre os dias 25 e 27 de setembro, mais de 150 líderes mundiais estarão na sede da ONU, em Nova York, para adotar formalmente uma nova agenda de desenvolvimento sustentável. Esta agenda é formada pelos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), que devem ser implementados por todos os países do mundo durante os próximos 15 anos, até 2030.
Conheça os Objetivos Globais:
1: Acabar com a pobreza em todas as suas formas, em todos os lugares
2: Acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e melhoria da nutrição e promover a agricultura sustentável
3: Assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todos, em todas as idades
4: Assegurar a educação inclusiva, equitativa e de qualidade, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos
5: Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas.
6: Assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todos.
7: Assegurar o acesso confiável, sustentável, moderno e a preço acessível à energia para todos
8: Promover o crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, emprego pleno e produtivo e trabalho decente para todos
9: Construir infraestruturas resilientes, promover a industrialização inclusiva e sustentável e fomentar a inovação
10: Reduzir a desigualdade dentro dos países e entre eles
11. Tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis
12. Assegurar padrões de produção e de consumo sustentáveis
13. Tomar medidas urgentes para combater a mudança climática e seus impactos
14. Conservação e uso sustentável dos oceanos, dos mares e dos recursos marinhos para o desenvolvimento sustentável
15. Proteger, recuperar e promover o uso sustentável dos ecossistemas terrestres, gerir de forma sustentável as florestas, combater a desertificação, deter e reverter a degradação da terra e deter a perda de biodiversidade
16. Promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis
17. Fortalecer os meios de implementação e revitalizar a parceria global para o desenvolvimento sustentável
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